Por Andressa Nathanailidis (para ler a primeira parte deste artigo clique aqui)
Mário de Andrade e uma exceção: Heitor Villa-Lobos
Em comparação a outros compositores modernistas, Heitor Villa Lobos representou um caso à parte. De formação erudita e gênio forte, recusava qualquer influência, declarando-se um músico independente. Embora buscasse o exotismo de temas populares, algo que pudesse encantar e captar a atenção de ouvintes europeus, Villa-Lobos pouco se preocupava com a construção de uma possível identidade musical brasileira. Era vaidoso e tinha a ambição de projetar-se de forma autônoma.
Sob a condição de crítico musical, inúmeras vezes, Mário de Andrade escreveu sobre os aspectos que considerava defeituosos na obra de Villa-Lobos. As “muitas repetições, desequilíbrios, facilidades e efeitos de sua música” eram sempre criticados. Mas, Mário reconhecia que “a falta de lucidez” e o “arroubo constante” eram a salvação do compositor, de modo que sem a presença de tais atributos, Villa-Lobos certamente, poderia incorrer em uma espécie de previsibilidade ou “cabotinismo”.
Em carta à Prudente de Moraes, Mário de Andrade faz um desabafo, a respeito da figura do compositor:
(…) Ignorante até a miséria do que é criticamente o Brasil músico, a obra dele se tornou um repositório incomparavelmente rico dos fatos, das constâncias, das originalidades musicais do Brasil. Não tem quase coisa do nosso populário musical, de que a gente não vá encontrar exemplo na obra do Villa. Coisas que ele absolutamente ignora” (Mário apud Travassos, 2001, p. 48).
Mas, se Villa-Lobos era impulsivo, Andrade foi uma criatura bastante ponderada e distinta. Introspectivo e inteligente, possuía dentre suas características, a virtude da reflexão. Agir por meio de impulsos, definitivamente, não fazia parte de sua personalidade.
Assim, com o intuito de transmitir seus conhecimentos e ideais sem, entretanto, causar antipatias ou inimizades, procurava cultivar, senão a amizade, ao menos uma camaradagem, entre aqueles que, assim como Villa-Lobos, não lhe eram tão receptivos.
Em determinadas ocasiões, inclusive, Andrade fez uso de pequenas artimanhas, para atingir seu objetivo final, que era a difusão e implementação do nacionalismo nas obras musicais. Um caso curioso dessa natureza ocorreu justamente com Villa-Lobos e culminou na produção da série Cirandas, uma das mais conhecidas em sua obra. O fato marcou um episódio inusitado na biografia de ambos.
Ao reparar a resistente postura de Villa-Lobos ao uso direto do folclore, Mário de Andrade decidiu lhe escrever uma carta provocadora, em que elogiava um inexistente e fictício compositor chileno, autor de “peças magistrais”. Ao escrever à amiga Oneyda Alvarenga, Andrade relata o episódio:
“escrevi uma carta de pura mentira pro Villa, me dizendo encantado com as obras de Allende, um chileno que eu fingia descobrir no momento, observava as peças em forma A-B, uma aproveitando um tema popular, outra de criação livre, quando muito se servindo de constâncias folclóricas, coisas assim*, e está claro fingindo uma admiração danada pelo homem, que ia escrever sobre ele, coisas que, eu sabia, deixavam “o Villa sangrando em sua imensa vaidade”. (Toni, 1987, p. 44 -45).
Após provocar-lhe em meio à referida carta, Mário de Andrade pediu-lhe uma encomenda: que escrevesse peças de dificuldade média para seus alunos de piano. Bastou alguns meses para que Villa-Lobos o convidasse a ouvir as Cirandas.
(…) poucos meses depois vim no Rio, não me lembro mais onde, era uma festa, havia muita gente, creio que intervalo de concerto, me encontro com o Villa numa roda. E ele imediatamente: ‘Olhe, vá lá em casa! Tenho umas coisas pra você. Bem! Não é nada daquilo que você me pediu!’ E sorriu com um arzinho superior meio depreciativo. Eu fui e eram as Cirandas. E era exatamente o que pedira, o que tivera a intenção de provocar no Villa, embora estivesse longe de imaginar Cirandas’” (Toni, 1987, p. 44- 45).
As Cirandas foram compostas em 1926, no Rio de Janeiro. A série foi dedicada ao pianista e amigo Alfredo Oswald (1884-1972) e teve sua primeira audição no país em 13 de agosto de 1929, executada pelo intérprete Tomás Terán (1896-1964).
“ ‘O bárbaro insultado’ atendia à sua revelia, a uma encomenda de Mário” ( TRAVASSOS, 2000, p. 51). Talvez, ao compor tal série, mal pudesse imaginar que esta faria tamanho sucesso, sendo executada, inclusive, na França, em 14 de março de 1930, por Janine Cools, na Salle Chopin.
Diante do episódio relatado, é possível observar a dimensão do empenho oferecido por Mário de Andrade ao nacionalismo musical. O escritor atuava de forma a incutir seus ideais mesmo naqueles que, a exemplo de Villa-Lobos, não tinham o hábito de seguir diretrizes alheias às próprias.
O amor indelével à música e ao Brasil
Mário de Andrade, intelectual ímpar, registrou seu amor à música e ao Brasil em diversas obras. Foi crítico, colecionador de discos, professor, pesquisador, escritor e musicólogo; um obstinado, designado a apreender e propagar a música regional— tantas vezes esquecida e marginalizada pela engrenagem sistêmica atravessadora de tempos e almas. Á frente de seu tempo, permanece sempre atual face aos olhos daqueles que se propõem a estudá-lo, a relê-lo e revisitá-lo, reconhecendo sempre a importância que teve (e tem) para a consolidação do entendimento acerca das bases culturais brasileiras.
Referências bibliográficas
– Catálogo Villa-Lobos, sua obra – 3ª edição, 1989.
– MOYA, Fernanda Nunes. OS ESCRITOS SOBRE MÚSICA DE MÁRIO DE ANDRADE: Em defesa do nacionalismo musical e da criação da Discoteca Pública Municipal de São Paulo. – Disponível em http://www.outrostempos.uema.br/OJS/index.php/outros_tempos_uema/article/viewFile/76/62. Acesso em 10/04/2017.
– TONI, Flavia Camargo. Mario de Andrade e Villa-Lobos. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1987.
– TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e Música Brasileira. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2000.