A TONALIDADE MENOR E SUAS ESCALAS: CARACTERÍSTICAS E CONTEXTOS
Por Turi Collura
Estudar a evolução da música ocidental, de suas regras, de suas escalas, assim como o surgimento do sistema tonal, é algo fascinante e que nos permite descobrir coisas muito interessantes sobre esse lado do caminho da humanidade. Neste artigo, vamos estudar a tonalidade menor e suas escalas, em uma breve viagem em busca de sua história, de suas características e contextos.
Introdução
Um belo dia, no mundo ocidental, houve um processo de desenvolvimento e de sucessiva decadência da lógica modal, que levou ao surgimento do assim chamado sistema tonal. Dessa forma, as muitas escalas usadas na Idade Média (os modos que chamamos de dórico, frígio, etc.. ), deram lugar, por volta da metade do século XVI, a apenas duas escalas: a escala maior (a escala jônica) e a sua relativa menor (a escala menor natural, ou escala eólia).
O que determinou essa mudança? Como e porque isso aconteceu? A pesquisa a esse respeito é grande e fascinante. Como é que é? É melhor uma boa feijoada? Está sonhando com as férias de verão?
Não se preocupe! Deixarei essas perguntas à literatura especializada e me concentrarei apenas em um acontecimento “chave” na evolução da linguagem tonal: o surgimento da “independência” da tonalidade menor e suas características.
A tonalidade menor e suas escalas
Ao estudarmos a teoria musical, nos deparamos, normalmente, com uma escala maior e três escalas menores: a natural, a harmônica e a melódica. Vejamos a figura a seguir:
Como se deu essa diferenciação no âmbito menor? Quando? Por que e para quê? O que significa? Como lidar com isso? … Muitas perguntas?
À frente de apenas uma escala maior, a tonalidade menor apresenta três variedades “oficiais”. Enquanto para os compositores de todas as épocas a ambiguidade da tonalidade menor foi fonte de inspiração, seu estudo precisa de algumas observações para ser devidamente entendido.
Vou citar o teórico alemão nosso contemporâneo Diether De la Motte, segundo o qual a divisão da tonalidade menor em três tipos de escalas diferentes, contida nos manuais elementares de teoria musical, resulta ser sem sentido. Em sua obra Harmonielehre (Manual de Harmonia) de 1986, De la Motte observa que nunca se viu, até hoje, uma composição em “menor harmônico”. Sempre segundo De la Motte, é preciso olhar para o modo menor não como escala, como uma sucessão de intervalos pré-estabelecida, mas sim como um reservatório de nove notas (o modo maior teria sete notas) disponíveis para a composição em menor.
Um pouco de história
Para entendermos como se deu a diferenciação das três escalas, voltaremos atrás no tempo. Não é fácil determinar um momento preciso em que se afirmou a tonalidade como organização hierárquica dos acordes caracterizada por um centro (a tônica).
No século XVI, os compositores começaram a desenvolver uma certa sensibilidade pela relação “dominante-tônica” e pelas formações de acordes por tríades, mas ainda se trata apenas de intuições. Até então, a abordagem à composição era “horizontal”, ou seja, por linhas melódicas que se encontravam gerando formações verticais (harmônicas) que não eram propriamente reconduzíveis a uma tonalidade.
Em 1547, um teórico chamado Glareanus acrescentou aos modos antigos ainda em uso (dórico, frígio, lídio, mixolídio e suas versões plagais ou “hipo”) duas novas escalas: a jônica (escala maior) e a eólia (a escala menor natural). Aos poucos esses dois novos modos acabaram sendo os únicos dois a sobreviver. No século XVII encontramos algo historicamente decisivo: aparecem, pela primeira vez, nossas “personagens”: a escala maior e a menor natural.
Foi no século XVII que a sensibilidade harmônica foi se desenvolvendo. Dá-se sempre mais importância à harmonia, isto é, ao elemento vertical. Nesta época temos a invenção do Baixo Contínuo, uma espécie de precursor do moderno acorde cifrado para o acompanhamento improvisado. As teorias harmônicas como as entendemos hoje começam a se desenvolver nesse período. Notamos que, ainda, uma formação triádica como mi-sol-dó não era considerada uma inversão de Dó maior mas sim um acorde de mi com um intervalo de sexta no lugar do quinto grau (esta última é uma “maneira antiga” de entender o acorde. Bach, ainda, considera o acorde citado das duas maneiras).
A GRANDE REVOLUÇÃO
Numa noite escura e tempestuosa, um alemão chamado Andreas Werckmeister (1645-1706), organista, compositor e teórico musical, acorda improvisamente gritando “Eureca!! Eureca!!” (imitando o grande inventor Arquimedes). Ele acabara de “inventar” a afinação temperada, graças a uma recente conquista da matemática: o logaritmo.
Corria o ano 1691, e pela primeira vez a humanidade iria dispor de um sistema de notas organizadas cromaticamente em que as tonalidades teriam todas “o mesmo som relativo”, as mesmas relações entre os intervalos.
As consequências da afinação temperada foram:
1. Bach escreveu os dois livros do “Cravo bem temperado” (publicados, respectivamente, em 1722 e em 1744).
2. Werckmeister cria o famoso “Círculo das quintas” que ainda hoje nos auxilia na aprendizagem e memorização das tonalidades, entre outras coisas. O fechamento do círculo representava a solução de algo que, desde Pitágoras, tirava o sono aos músicos matemáticos (mas essa é outra aventura, merece um artigo a parte)..
3. O francês J. P. Rameau publicou em 1722 o primeiro tratado de harmonia que fala de “centro harmônico” e de “Funções tonais”.
4. A humanidade se encaminhou definitivamente para a tonalidade, o Big Brother, o Big Mac e as cirurgias plásticas. Como disse o grande filósofo chinês Confúcio “agora já era!!!!”
A culpa é da sensível!
Dissemos já que, a partir dos séculos XVI e XVII, os compositores desenvolveram a noção de que existe uma relação entre os acordes que nós chamamos de Tônica e Dominante. Em suas linhas melódicas eles começaram a lidar com uma “notinha poderosa”: a que chamamos de sensível (lembramos que a sensível é a sétima nota da escala maior, dista um semitom da oitava e, por sua natureza, tende a se movimentar até a oitava). Os compositores começaram, então, a descobrir que numa relação de acordes por quintas descendente (dominante-tônica) a sensível joga um papel importante. Como mostra a figura a seguir, a escala maior possui a sensível, e o acorde construído sobre o seu V grau (dominante) contém essa nota.
Antes de sua teorização, os compositores da época barroca utilizavam já o movimento dominante-tônica (V-I), tanto harmonicamente bem como melodicamente. Esse “lance” do movimento V-I era interessante, por duas razões:
1. O movimento de quinta descendente entre os baixos do acordes;
2. A resolução da sensível.
Mas, quando aplicado à escala menor natural, no movimento V-I não tinha resolução de sensível! De fato, esta escala possui um sétimo grau menor, e o acorde construído sobre o seu quinto grau não é um acorde maior… resumindo: a escala menor natural não tem sensível.
Veja a figura a seguir.
Surpresa
Observe o final desta música: temos uma cadência IVm – Vm – Im “à moda antiga!!” isto é, fundamentada na escala menor natural.
O compositor Paul Hindemith uma vez afirmou: “antigamente usávamos muitas escalas (os modos da música gregoriana); depois passamos a usar duas escalas e a polaridade maior-menor. Provavelmente no futuro teremos uma só escala: a cromática”.
Concluindo
No século XX, a escala menor melódica foi objeto de muita atenção pelos músicos e teóricos de jazz, em busca de novas sonoridades. Em 1953, o compositor George Russell publicou a primeira versão de seu livro “The Lydian Chromatic Concept of Tonal Organization” que, ao longo de cinco décadas, veio se desenvolvendo e apresentando um novo “mundo/sistema musical”. A visão de Hindemith de uma unicidade de material compositivo encontra uma possível proposta na teorização de George Russell. Sua “profecia” está se tornando realidade? Olhando para trás, as velhas três escalas menores ficam firmes, em nosso uso, mas já começam a mostrar toda a sua idade. Outras práxis apareceram no horizonte… disso falaremos em um outro episódio.
Até a próxima!