
Uma das principais obras de Gershwin estaria sendo tocada errada?
Por Turi Collura
Um dilema digno de Shakespeare no mundo da música: quais seriam as notas a serem tocadas num dos trechos mais característicos de uma das principais obras do compositor norte-americano George Gershwin, An American in Paris?!
Para aqueles que, assim como eu, são admiradores profundos do compositor norte-americano George Gershwin, uma obra é fundamental: An American in Paris. Mas a forma como seu mais distinto efeito sonoro vem sendo executado por anos, agora se tornou alvo de polêmica.
Escrita em 1928, An American in Paris é um poema sinfônico que chama atenção pelo talentoso modo como Gershwin une a linguagem erudita de sua formação musical às características típicas da música popular norte-americana então em gestação – um ótimo exemplo de um recurso que seria utilizado por vários compositores do novo mundo a partir do século XX.
O resultado é um refinado produto sonoro que, embora concebido para ser apresentado em formais salas de concerto, inevitavelmente faz o ouvinte suingar na cadeira.
Outro aspecto interessante da obra se dá em seu título autoexplicativo: a música evoca as andanças de um turista norte-americano pela capital francesa. Tanto que Gershwin utiliza como instrumento, em alguns pontos da partitura, buzinas de táxi francês para criar um efeito da paisagem sonora urbana parisiense dos anos 20.

Capa do manuscrito da partitura de An American in Paris, escrita em 1928 (Fonte: imslp.org)
E é exatamente nas notas que essas buzinas supostamente deveriam tocar que reside a polêmica.
Lá, si, dó, ré?
Tudo começou quando uma edição crítica das obras de George e Ira Gershwin, que está sendo preparada para ser lançada pela Universidade de Michigan (EUA), afirmou que as notas que as buzinas de táxi tocam atualmente – e que há pelo menos 70 anos são padrão – não são aquelas imaginadas originalmente por George Gershwin.
Desde pelo menos 1945, as notas tocadas são: lá, si, dó e ré. Isso porque na partitura escrita à mão pelo próprio Gershwin, para cada vez que a buzina aparece, ele escreve uma letra: A para a primeira, B para a segunda, C para a terceira e D para a quarta, algo que pode ser visto também nas partituras editadas e que ao longo dos anos foi interpretado como sendo as notas desejadas por Gershwin. Veja:




Tocada dessa maneira, a sonoridade resultaria como na gravação abaixo. Para auxiliar, indico o momento em que cada uma aparece: Lá (28″) – Si (36″) – Dó (43″) – Ré (50″)
Só que o que está colocando essa interpretação em xeque é a tese de que essas letras não representariam notas musicais, mas apenas o “nome” que o compositor deu a cada buzina.
Em entrevista ao jornal The New York Times, Mark Clague, professor de musicologia na Universidade de Michigan e editor da edição crítica em questão, afirma que George Gershwin, durante sua viagem a Paris em 1928, escolheu a dedo as buzinas de táxi que queria comprar, e que amigos recordam que ele foi bem específico quanto às notas que elas “tocavam”.
Além disso, ele cita uma gravação de An American in Paris de 1929, feita sob supervisão do próprio George Gershwin e que provavelmente usa as buzinas originais. Ali, as notas tocadas são mais dissonantes: lá bemol, si bemol, um ré “mais alto” e um lá “mais baixo”.
Ouça abaixo a gravação onde supostamente as buzinas originais teriam sido usadas. Para auxiliar, indico o momento em que cada uma aparece: Lá bemol (28″) – Si bemol (34″) – Ré “mais alto” (42″) – Lá “mais baixo” (49″)
Como se pode notar, a diferença entre as sonoridades das duas gravações é evidente. Mas então estariam as orquestras atuais tocando as notas erradas? Ou melhor: existem, de fato, notas corretas que essas buzinas devem tocar? Alguma espécie de “verdade absoluta”?
A única forma de sabê-lo, teria sido se o próprio Gershwin tivesse especificado claramente quais notas ele desejava. Mas não o fez. Talvez ele mesmo não tivesse restrições quanto às notas a serem tocadas, interessando mais o efeito sonoro que as buzinas causam do que a altura que elas tocam.
Mas são apenas especulações, a resposta final provavelmente nunca teremos.