
Música e filosofia: uma questão sobre utilidade e saber poético
Por Vagner Sardinha
Música e filosofia são questões que devem sempre aparecer juntas. Esse é o assunto do artigo de hoje, que nos propõe uma reflexão sobre nossa “sociedade utilitarista” e a posição da música – e das artes em geral – dentro dela.
Uma pergunta que trata dos principais anseios da nossa modernidade é: “Para que serve?” É uma pergunta válida quando falamos em objetos, projetos, incursões tecnológicas, etc. Mas e se direcionarmos essa questão para a música? Sendo mais direto: para que serve a música?
É uma questão que não deixa de ser coerente com o modo de pensar moderno, visto que proporcionamos, intencionalmente ou não, mais espaço e visibilidade para aquilo que serve a que ou a alguém, o restante entrando na categoria de bens supérfluos. Respondendo a questão, podemos dizer que a música não serve a nada além da própria música.
Tendemos a dar mais espaço e visibilidade para aquilo que serve a que ou a alguém.
Ora, alguns podem dizer, mas isso não é uma resposta. Na verdade pode não ser satisfatória, mas é uma resposta digna à conotação irônica da pergunta. Dizer que a música não serve para nada além dela não é apenas responder, é abrir caminho para uma questão filosófica no qual podemos pensar a música.
Ou seja, a questão não é para que serve e sim o que é música. Isso não é simplesmente uma questão que temos, mas uma questão que nos tem e nos toma sempre que pensamos, tocamos e escutamos música.
“Música não quer dizer nada, ela quer dizer música” (Edu Lobo, compositor brasileiro)
O compositor Edu Lobo disse certa vez em entrevista: “Música não quer dizer nada, ela quer dizer música”. Pensar por esse caminho é pensar a música como saber próprio, não como saber dependente de outros saberes, ou, ainda, como dependente de propósitos para existir como música. Nosso famoso bordão: música para isso ou aquilo.
Música para música é o caminho filosófico-poético de quem se propõe a pensar música como música. Por mais simples que pareça, a questão não acaba por aqui, é um caminho sem fim, pois mesmo sabendo onde estamos – neste caso pensando música – nunca saberemos uma resposta final que dê conta em sua totalidade do que é música. Entretanto, o sentido existencial que o caminho do pensamento nos proporciona é o que nos inquieta, é o que nos faz fazer música.
Apesar de falarmos aqui da questão do utilitarismo diante de uma perspectiva moderna, a questão não é tão nova – tem pelo menos vinte e cinco séculos, pois começa quando Platão, em A República, idealiza seu modelo de polis, deliberando tarefas específicas para as atividades de cada cidadão. Sendo assim, cada um serve a polis de acordo com seu trabalho, ou seja, o modelo de cidade que seguimos até hoje.
Na Grécia antiga
Os gregos, principalmente antes de Sócrates e Platão, não definiam arte e música nas mesmas palavras e conceitos que definimos hoje. A palavra “arte” deriva de arché que é de origem latina. O conceito que se aproxima do que entendemos como arte na Grécia antiga é dito na palavra techné, que está na origem da palavra “técnica”, mas nada tem a ver com o que entendemos por técnica nos dias atuais: se diz mais sobre um saber fazer. Não qualquer fazer, o fazer poético (poiesis).
Música era dita como mousiké, atividade proveniente das musas, não somente a música instrumental, e sim música e poesia. Dessa forma, os poemas não eram escritos e recitados, eram cantados.
Como pode a memória de uma sociedade ágrafa como a Grécia antiga nos atingir e nos influenciar tantos séculos depois? O saber do poeta músico era o saber hegemônico e construtor da memória.
É somente pela música que conhecemos obras incríveis como a Ilíada e a Odisseia, pois a música constitui memória, e sem memória um povo não se constitui como povo.
A relação do grego antigo com a música é obviamente bem diferente da que temos hoje. É difícil pensar em uma possível utilidade da música para o grego antes do advento da polis, da moeda e da escrita. Esses três inventos foram determinantes e decisivos não só para a música e as artes, mas para a humanidade como um todo. Poderíamos até dizer que a música servia para criar memória, mas não – isso não é serventia, visto que é próprio da maneira de como a música se dá. A memória não é uma instituição ou coisa, ela é junto e com a música, bem como a música é junto e com a memória.
Além de música e memória, música e filosofia são questões que devem sempre aparecer juntas. A etimologia da palavra “filosofia” diz do que é próprio do saber, e quem possuía o saber hegemônico na Grécia antes do surgimento da escrita era o poeta, o aedo, o bardo, o cantador, o músico. Dessa forma, podemos dizer que a filosofia, da maneira que se constituiu como saber, assim como a poesia, tem relação direta com a música.
Pensar e fazer música, filosofia, bem como compreender a questão poética, estão muito além de qualquer utilidade, fazem parte da existência, daquilo que nos torna músicos e não meros instrumentos de uma sociedade utilitária.
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