Aprendendo com os gigantes: analisando a música “No more lonely nights” de Paul McCartney

Paul McCartney

Por Turi Collura

Qual é o segredo de uma canção de sucesso? Em quais ingredientes se baseia? Neste artigo, vamos analisar uma música muito conhecida do ex-Beatles Paul McCartney, com o objetivo de mostrar algo sobre como um gigante da canção popular compõe e arranja.

No final da década de 80, ouvi com interesse uma entrevista com Paul McCartney na qual o músico discorria sobre a sua maneira de compor. Durante a sua fala, ele disse sorrindo algo surpreendente para mim: “se quiser compor uma canção de sucesso, inicie a música pela subdominante!”. Um convite e tanto, vindo dele, proferido com simplicidade e autoridade!

Lembrando daquela entrevista, resolvi analisar uma música de 1984 muito bonita e que nos reserva surpresas interessantes: No more lonely nights.

A música foi inicialmente lançada em um filme produzido pelo próprio McCartney e que se revelou um fiasco total. Mas a canção se colocou entre as melhores daquele ano e da década de 80. Quem tem memória daquele período, certamente dançou e cantou muito acompanhando o seu refrão! …Sim, eu integrei essa turma, confesso! Corria a época de Careless Wisper e Wake me up before you go-go (Wham) de Like a virgin (Madonna).

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Era, também, a época de Money for nothing (Dire Straits), anos das baterias eletrônicas, dos baixos sintetizados e dos “claps” (as batidas de mãos) sampleados.

Mas vamos, agora, à nossa análise musical.

A estrutura da música
Numa visão macro, observamos que a música é articulada entre estrofes, pontes, refrãos e dois solos. Preparei uma imagem em que organizei essas seções por cores, para melhor observarmos como são dispostas. Logo podemos reparar certas irregularidades de compassos: estrofes e refrãos ora de 8 compassos, ora de 7 compassos; pontes de 3 compassos, que se tornam de 4 ou de 8 compassos. Que tal acompanhar a imagem enquanto ouvimos a música?

Harmonia e “truques” compositivos
Preparei um vídeo em que conduzo uma análise harmônica e formal da música. Vamos assistir, para, em seguida, nos aprofundarmos nesse estudo.

Uma análise harmônica e estrutural das seções da música
A música, que está na tonalidade de Fá Maior, começa com uma primeira estrofe. O primeiro acorde da música é o segundo grau Gm7 (Paul McCartney iniciou mesmo com a subdominante, como disse na entrevista!!). Mas o que soa muito interessante (“diferente”?) é o fato desse acorde ter o baixo em fá: Gm7/F. Os primeiros dois acordes formam uma cadência II-V, que porém não resolve no primeiro grau, mas sim no sexto grau da tonalidade. No quarto compasso temos uma cadência IV-V, essa sim resolve (no compasso 5) no primeiro grau (F). Observe um detalhe: no sexto compasso da música temos um compasso em 2/4. Encontramos esse expediente em muitas músicas de Paul, e, consequentemente, dos Beatles: uma quebra do fluxo através de compassos diferentes, de quiálteras e outros recursos interessantes. O último compasso dessa primeira estrofe ainda apresenta um acorde de dominante… mas com o baixo na subdominante.

Logo segue uma segunda estrofe, em tudo igual à primeira, mas com um detalhe interessante, em relação à outra: falta o último compasso. Sua estrutura resulta ser, portanto, de 7 compassos.

Uma canção de sucesso alterna, quase sempre, partes diferentes: a estrofe propõe uma melodia, uma sequência harmônica; o refrão traz algo diferente, às vezes uma modulação, às vezes apenas uma nova melodia, uma nova sequência harmônica.

Frequentemente, estrofe e refrão estão ligados por pequenos trechos, em inglês chamados “bridges”, em português “pontes”. Esse é o caso de nossa música: após a segunda estrofe, Paul McCartney prepara o refrão através de uma ponte de três (!!) compassos:

A importância do refrão!
O refrão, normalmente, traz aquela melodia que gruda como um chiclete em nossas cabeças nos acompanhando um dia inteiro sem que consigamos nos livrar dela (pense, por exemplo, na música “All you need is love”… o que veio em sua mente com certeza foi o refrão!). Frequentemente o refrão é o lugar em que “tudo se encaixa”. Tudo que foi “dito” antes adquire sentido nessa seção da música. É onde – feitas as devidas exceções – o cantor pronuncia o título da música!

Na canção que estamos analisando, o refrão traz uma maior densidade rítmico-harmônica. É o ponto alto da música, em que Paul canta “No more lonely nights”! Os primeiros dois compassos apresentam uma cadência IV-V-I (com um pequeno intercalar “esperto” (F/A) que dura apenas uma colcheia, realizado pela banda e marcado pelo prato da bateria). A harmonia dos compassos 3 e 4 é igual, concluindo o período musical iniciado anteriormente. Em seguida, a mesma frase termina no sexto grau, seguindo em direção da dominante.

Após o refrão, Paul apresenta novamente uma estrofe de 7 compassos (igual à estrofe 2) e, em seguida, uma ponte de 3 compassos (igual à anterior). Seguirá um novo refrão… agora com um compasso a menos (7 compassos):

Uma nova ponte (agora de 4 compassos) prepara a chegada de um solo de guitarra, que certamente contribuiu consideravelmente ao sucesso da música.


O solo bonito é de David Gilmour, o guitarrista dos Pink Floyd, amigo de Paul (Beatles e Pink Floyd gravavam, nos anos Sessenta pela EMI, uns ao lado dos outros nos mesmos estúdios. A amizade entre os dois músicos foi além, e os dois se apresentaram em algumas ocasiões em concertos. Gilmour aparece repetidamente na carreira de Paul como sideman).

Paul McCartney e David Gilmour

A estrutura do solo é a da estrofe 2: sete compassos apenas em que Gilmour consegue colocar muita emoção.

Após o solo, Paul repete a pequena ponte de três compassos e novamente o refrão de sete.

Após isso aparece uma nova ponte. Trata-se de uma nova seção de 8 compassos construídos sobre um pedal de dominante (alterna o acorde sus à tríade “normal”) em que Paul apresenta um novo material melódico:

Concluída essa seção, Paul McCartney continua com um outro trecho que considero ainda uma ponte, composto pelos mesmos acordes, mas que comporta uma nova melodia. Paul canta “No more lonely nights” agora com outra melodia (em 1986 o refrão da música “Take my breath away”, trilha sonora do filme “Top Gun” usará essa melodia!! Um acaso? Não? Quem sabe?).

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Nestes últimos compassos Paul canta “No more lonely nights” agora com nova melodia (em 1986 o refrão da música “Take my breath away”, trilha sonora do filme “Top Gun” usará essa melodia!! Um acaso? Não? Quem sabe?). Confira a melodia desta outra música:

Para terminar, retorna David Gilmour para mais um solo de guitarra gritante que fecha a música em fade-out. O novo solo é agora construído sobre o acorde de… Lá bemol menor… por que não solar em Lá bemol menor?!

Concluindo
A análise de “No more lonely nights” nos levou a observar detalhes compositivos interessantes. Seu arranjo propõe, no decorrer da música, pequenas variações ao reapresentar suas seções, não caindo na banalidade da simples repetição. “Variação”, aliás, parece ser a palavra de ordem, que se substancia em pequenos detalhes que certamente passam despercebidos a ouvidos “leigos”, ao mesmo tempo em que cativam o ouvinte.

A “receita” de Paul, para compor essa música de sucesso, contempla ainda uma métrica irregular: nada de 8+8+8+8 compassos, nada de estruturas “Ctrl-C + Ctrl-V” bastante perigosas em nossos dias, em que dispomos de potentes softwares de produção musical!

Vale a dica, então: para construirmos boas canções usemos todo tipo de variação e de alternância entre seus elementos. Lembrando que “a elegância está nos detalhes”, e que um bolo gostoso se faz com bons ingredientes, usados nas doses certas!

Até a próxima!!

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