
Noel Rosa, a Fita Amarela e o malandro
Por Turi Collura
Na letra de “Fita Amarela”, lançada em 1933, Noel Rosa se baseia em dualidades e antagonismos tais como vida/morte, catolicismo/candomblé, branco/preto, e faz exaltação às mulheres e à boemia.
Em sua produção artística, Noel Rosa teve, sem dúvida, uma relação muito profunda, bem como multifacetada, com o tema da malandragem, assunto que me parece uma de suas principais fontes de inspiração. O linguajar do malandro é cativante, por ser evasivo, polissêmico, estilizado. Ele nunca chama as coisas pelo que são, preferindo utilizar gírias para se comunicar.
Essa performance verbal lhe serve para manipular a discussão com o outro, tornando-a sempre a seu favor. É possível, se não provável, que Noel, atento às questões linguísticas, tenha observado a performance peculiar do linguajar do malandro, sendo inspirado por ela. Assim, uma característica marcante dos textos noelinos, a da ambiguidade da escrita, que carrega em si pontos de vista múltiplos e/ou antitéticos, poderia estar inspirada na própria malandragem.
Com proceder malandro, então, em seus textos Noel aparenta exaltar o malandro ao mesmo tempo em que parece querer levar o ouvinte/leitor a refletir sobre as consequências – às vezes com direito a uma leitura negativa – sociais de suas práticas.


O Poeta da Vila, como Noel Rosa era apelidado, era filho de uma família de classe média de Vila Isabel – um bairro do Rio de Janeiro em ascensão econômica – estudou em um colégio tradicional, o colégio São Bento. Mas Noel adorava a vida noturna, a boemia, a bebida e as mulheres. E por isso se encontra, segundo meu ponto de vista, em uma posição privilegiada para escrever sobre a malandragem de uma forma nova e mais ampla: ele conhece o morro e seus personagens, tem livre acesso a eles, frequenta os sambistas de lá – Cartola será seu grande amigo e parceiro, tanto de sambas assim como de noitadas e bebidas – e frequenta, também, os malandros, alguns dos quais são seus amigos.
Ao mesmo tempo, ele tem acesso às badaladas rádios da cidade, muito em voga naquele período, e, dada a sua condição social, tem, com muita probabilidade, a oportunidade de travar alguma forma de contato com as reflexões e as vertentes da corrente modernista, oriunda da Semana de Arte Moderna de 1922.
Entre muitas letras altamente interessantes produzidas por Noel e ligadas à malandragem, há uma que tem chamado a minha atenção, tanto por sua sagacidade, bem como por basear-se, copiosamente, em dualidades e antagonismos tais como vida/morte, catolicismo/candomblé, branco/preto, entre outros. Refiro-me à letra da canção “Fita amarela”, em que o discurso carnavalesco satiriza a morte, zomba dela:
“Quando eu morrer
Não quero choro nem vela,
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela.
Se existe alma,
Se há outra encarnação
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixão
Não quero flores,
Nem coroa de espinho,
Só quero choro de flauta,
Violão e cavaquinho”
Podemos observar, nesses versos, um dualismo entre elementos do candomblé e do catolicismo: ao invés de choro e vela, que parecem próprios de um velório católico, o protagonista – um malandro – prefere uma “fita amarela”. Se a fita é, por si só, própria das oferendas do candomblé, a de cor amarela é própria de Oxum, orixá feminino, a deusa mais sensual e bela. E se o protagonista deseja ter, ao morrer, uma fita gravada com “o nome dela”, é possível que se trate propriamente do nome da deusa.
Encarnação
A “outra encarnação”, à qual se refere o “eu lírico”, é um conceito próprio de religiões reencarnacionistas, que me parece contraposta à “coroa de espinho”, própria do Cristo, e, portanto, do catolicismo. Enquanto os espinhos são sofrimento, a morte que o sujeito imagina e deseja para si é uma festa, uma orgia. O clima de festa do candomblé próprio dos morros, com a mulata que sapateia ao ritmo da música, da flauta, do violão e do cavaquinho, contrapõe seu dinamismo ao velório, e a morte imaginada pelo boêmio se transforma num carnaval. Eis que o dualismo religioso se entrelaça com outro: o entre a morte e a vida, essa última representada aqui pela festa. Trata-se de um dualismo tanto universal quanto antigo: é o dualismo entre Eros e Tânatos, que Sigmund Freud definiu, na psicanálise, respectivamente, a pulsão de vida e a pulsão de morte.
Desenvolvida na obra “Além do princípio do prazer”, a ideia de Freud, baseada nos conceitos do grego Empédocles, é a de que exista, em cada ser humano, um jogo constante entre a pulsão de vida, que estimula o crescimento da vida e sua realização – Eros, a pulsão sexual – e a pulsão de morte, que alimenta princípios destrutivos – Tânatos. Aos versos originais que compõem a letra, Noel acrescenta, logo depois, outros, também atravessados pelo dualismo vida e morte, que assim começam:
“Estou contente
Consolado por saber,
Que as morenas tão formosas
A terra um dia vai comer”
O sujeito está contente e consolado por saber que um dia as morenas formosas morrerão. Que consolo é esse, pela morte do outro? Observamos, então, o prazer na morte. Provavelmente, é morrendo que as morenas irão juntar-se novamente a ele e, assim, todos estarão novamente reunidos para a festa. A palavra “comer” remete novamente ao ato sexual: se não for ele, que seja a terra, então, a possuí-las com sua força poderosa. No dualismo candomblé/catolicismo exposto na letra, podemos ler, ainda, uma contraposição entre elementos das culturas branca e negra.
Podemos lembrar, a esse propósito, da letra da música “Filosofia”:
“O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome.
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome.
[…]
Quanto a você
Da aristocracia
Que tem dinheiro
Mas não compra alegria,
Há de viver eternamente
Sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia.”
Em “Filosofia”, o burguês preocupado cada vez mais com sua ascensão social desprezaria a figura do malandro, o qual, avesso ao trabalho, constituiria a imagem do fracasso, um peso morto, ou, mais ainda, um perigo para seu desenvolvimento.
Em “Fita amarela”, o burguês e a cultura branca poderiam ser representados, porque não, por sua religião predominante. Segundo uma visão católica, o destino do malandro, ao morrer, não será o paraíso, mas sim o inferno. E se é para ali que o malandro vai, que possa, então, continuar a ter a orgia e a festa.
O malandro da letra se compraz de ser um canalha, de ter vivido devendo a todos, de não ter nunca pago a ninguém. É no momento da morte que aparecem os herdeiros, os quais representam a continuidade da vida. A exaltação máxima do malandro da letra é não deixar nada para ninguém: nem para herdeiros – aliás, nem mesmo deixar herdeiros! – nem para credores. Ele nunca deu dinheiro aos outros, nem nunca dará. Assim procedem os versos restantes da letra:
“Não tenho herdeiros,
Não possuo um só vintém,
Eu vivi devendo a todos,
Mas não paguei a ninguém
Meus inimigos,
Que hoje falam mal de mim,
Vão dizer que nunca viram
Uma pessoa tão boa assim
Quero que o sol
Não visite o meu caixão
Para minha pobre alma
Não morrer de insolação”
Se o boêmio não quer que o sol visite seu caixão, é porque ele vive da noite. Mais uma vez, encontramos, aqui, a oposição sol = vida/morte. Nesse verso, Noel usa do nonsense humorístico, do surreal: o sol mataria sua pobre alma, que morreria de insolação – de fato, racionalmente, como seria possível o sol matar uma alma? Se, uma vez morto, a partir do momento do velório, quem morre vira santo – mais um elemento tomado pela religião católica – morto o malandro, até seus atuais inimigos passarão a dizer que “nunca viram /Uma pessoa tão boa assim”. Quem são esses inimigos? A burguesia, inimiga dos ideais boêmios? Afinal, parece-me que o desejo último do “eu lírico” é que o mundo que o condena possa redimi-lo.
Curiosidade
Em 2006 saiu o filme Noel, Poeta da Vila, drama biográfico dirigido por Ricardo van Steen. O filme é muito acessível (hoje se encontra no Netflix, por exemplo), vale a pena.
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