
Stravinsky: como eu me vejo
Em agosto de 1934, o russo Igor Stravinsky, um dos principais compositores do século XX, concedeu uma entrevista à revista britânica Gramophone, especializada em música erudita. Na verdade, trata-se de um texto no qual o compositor de A Sagração da Primavera fala sobre si mesmo e sua obra, sobre as críticas que sempre recebeu e sobre o gosto do público.
Uma ótima oportunidade de saber como uma das mentes musicais mais brilhantes de todos os tempos pensava a música!
Você me pergunta sob quais influências eu comecei a compor há 25 anos? Os grandes mestres vivos da Rússia, Alemanha e França – Rimski-Kórsakov, Strauss e Debussy – foram minha primeira inspiração – e a influência do meu pai, que era um grande baixo. Um esplêndido artista, sua fama poderia ter se igualado a que Chaliápin1, se ele saísse da Rússia, mas nada o convenceria a deixar seu país. Então eu fui criado numa atmosfera de realização musical e herdei uma capacidade natural de transmitir meus sentimentos em forma de música e um profundo interesse no estudo da técnica.
Eu estudei composição com o próprio Rimski-Kórsakov, e desde os primeiros encontros ele insistia na importância do trabalho sistemático.
“Nunca espere pela inspiração”, ele dizia, “mas componha regularmente toda manhã, esteja com vontade ou não. Se você não conseguir nada em um dia, nunca se sinta desencorajado: você pode ter certeza que noutro dia as ideias irão fluir.” E eu sempre achei esse método regular de trabalho o melhor.

Igor Stravinsky
Nos dias de hoje, em que boa parte do meu tempo eu passo também tocando minhas próprias composições em público, minha vida está dividida em duas partes. Quando estou em casa eu componho toda manhã e levo uma vida calma e organizada; quando viajo e toco eu encontro pessoas, isso me distrai, então eu não componho absolutamente nada.
Se eu toco obras de outros compositores além das minhas? Bem, eu sinto que para que um artista fique realmente satisfeito com sua obra, ele deve se especializar, então eu prefiro tocar e estudar obras de compositores contemporâneos e clássicos cuja música é próxima, em espírito, da minha.
As pessoas frequentemente me dizem: “Nós gostamos de sua Petrúshka2 e do Pássaro de Fogo3 muito mais do que de seus trabalhos posteriores. Por que você não continuou compondo naquela linha?” Mas à parte o fato de que quando eu lhes pergunto o que eles querem dizer com “naquela linha” ninguém tem uma resposta para dar, deve ser lembrado que eu escrevi Petrúshka e Pássaro de Fogo há 22 anos. Eu era jovem naquela época, e como qualquer outra pessoa eu lamento que não possa ter feito nada a respeito de ter ficado mais velho e, estando mais velho, eu encontro novos problemas musicais para resolver e novos caminhos de expressar as soluções.
Não se esqueça de que essas pessoas que hoje gostam de Petrúshka e Pássaro de Fogo e mesmo de A Sagração da Primavera4 (embora os críticos ainda lancem palavras de ofensa contra esta obra!) porque estão acostumadas a elas e aprenderam a aceitá-las depois de as escutarem constantemente, não estavam presentes às estreias dessas obras quando elas não eram familiares e causavam ainda mais discussão e controvérsia do que meus trabalhos posteriores causam hoje.
As pessoas frequentemente me dizem: “Nós gostamos de sua Petrúshka2 e do Pássaro de Fogo3 muito mais do que de seus trabalhos posteriores. Por que você não continuou compondo naquela linha?” Mas à parte o fato de que quando eu lhes pergunto o que eles querem dizer com “naquela linha” ninguém tem uma resposta para dar, deve ser lembrado que eu escrevi Petrúshka e Pássaro de Fogo há 22 anos.

Eu era jovem naquela época, e como qualquer outra pessoa eu lamento que não possa ter feito nada a respeito de ter ficado mais velho e, estando mais velho, eu encontro novos problemas musicais para resolver e novos caminhos de expressar as soluções. Não se esqueça de que essas pessoas que hoje gostam de Petrúshka e Pássaro de Fogo e mesmo de A Sagração da Primavera4 (embora os críticos ainda lancem palavras de ofensa contra esta obra!) porque estão acostumadas a elas e aprenderam a aceitá-las depois de as escutarem constantemente, não estavam presentes às estreias dessas obras quando elas não eram familiares e causavam ainda mais discussão e controvérsia do que meus trabalhos posteriores causam hoje.
Críticos continuamente dizem de mim “Stravinsky não se desenvolve gradualmente, mas em movimentos bruscos – ele dá saltos.” O que os pobres colegas não entendem é que mesmo na natureza não há um desenvolvimento “gradual” no sentido em que eles empregam esse termo; basta que alguém assista ao crescimento de uma planta com um microscópio! Mas porque um dia eu componho o Pássaro de Fogo, outro dia Apollon Musagète5, outro dia o Concerto para Violino6, outro dia o Duo Concertante7, eles dizem que eu “dou saltos”. Isso causa mal-estar e mal-entendido, pois eu não “dou saltos”! O que acontece é que simplesmente para cada novo trabalho que eu começo, eu tenho um novo conjunto de problemas para resolver, eu estou trabalhando com um material completamente novo e frequentemente com instrumentos diferentes.
Por exemplo, depois de escrever o Concerto para Violino, eu fiquei profundamente interessado em estudar o papel do violino na música de câmara, e a ideia do Duo Concertante para piano e violino, o qual eu mais tarde gravei com Dushkin8, nasceu. Por anos, a mistura dos acordes do piano com os acordes feitos para vibrar pelo arco parecia, para mim, produzir confusos efeitos pseudo-orquestrais que são qualquer coisa menos agradáveis. Para solucionar este problema instrumental e acústico, eu fui finalmente obrigado a recorrer a um número mínimo de instrumentos – apenas dois, combinação a qual me pareceu muito mais pura do que aquela de piano e vários instrumentos de cordas.
Mas por que estigmatizar isso como sendo um “salto” dado do Concerto para Violino para o Duo Concertante? São apenas coisas diferentes, como em uma refeição eu comer uma fruta, na próxima um bife, na próxima um bolo… Ninguém discute por isso, é simplesmente senso comum. E eu não quero discutir com meus críticos, se pelo menos eles não estivessem sempre tão ocupados explicando coisas que eles próprios não entendem!
O tempo todo outras pessoas tentam me explicar, quando na verdade somente eu posso explicar a mim mesmo. Continuamente os críticos perguntam: “O que deu no Stravinsky para ele ter feito isso, ou aquilo, ou qualquer outra coisa?” Mas nunca lhes ocorre que sempre há uma razão para o que eu faço, ou que eles digam para si mesmos “Stravinsky tinha algum objetivo definido ao compor esta obra. Qual era o seu objetivo, e ele teve sucesso ou fracassou em alcançá-lo?”

Igor Stravinsky, 1929
Da mesma forma, muitas pessoas parecem obcecadas com a ideia de que eu não desejo expressar emoção em minha música. Elas estão completamente equivocadas.
A emoção está lá claramente – eu a sinto e expresso, e para aqueles que não podem ou não irão compartilhar dela, eu posso apenas sugerir que eles procurem um psiquiatra!
O público está sempre pronto para condenar a “nova” música porque ela não está repleta do tipo de melodia e emoção ao qual ele está acostumado e pode reconhecer ao ouvir pela primeira vez. Eu acho que antes de se apressarem em criticar, essas pessoas fariam bem em lembrar que mesmo Gounod, na sua época, foi acusado de escrever música sem melodia, e que a mesma acusação foi feita contra Wagner e Debussy.
O apreciador comum de música sempre achou difícil entender a nova música de sua própria época – de envolver-se em suas emoções e apreciar as ideias melódicas de qualquer compositor que tenha algo original para dizer e uma maneira original de dizê-lo. Foi só recentemente que a profundidade do sentimento inerente à música de Mozart foi percebida e compreendida, ainda que a emoção tenha sempre estado ali para aqueles com ouvidos para ouvir e coração para compreender!
Mas eu lamento que pessoas assim estejam ficando cada vez mais raras, em vez de numerosas, pois embora nunca tenha havido uma época em que a música fosse mais amplamente distribuída, isso está transformando a grande maioria dos ouvintes em preguiçosos que só querem ouvir o que eles já conhecem ou podem reconhecer como familiar, seja no tipo ou na forma; que têm medo de originalidade e de novas experiências musicais. A possibilidade de se poder escutar música a qualquer momento apenas virando um botão ou colocando uma gravação serve para incentivar uma atitude superficial em relação à música, que ameaça minar suas bases. Antigamente, moças consideradas prendadas comiam bolos em sua sala de estar, enquanto tocavam piano. Hoje, elas ainda comem bolos, eu imagino, mas o piano está fechado e o rádio as acompanha enquanto comem!

De minha parte, eu preferiria infinitamente uma moça que tocasse mal o piano a uma que apenas escute. Aqueles que tiveram contato com a música entendem-na melhor e, aqueles que entendem, escutam melhor.
E nós nunca teremos um mundo no qual a música será genuinamente entendida, apreciada, contemplada e amada até que os ouvintes se tornem ativos novamente – ativos não apenas na performance da música, mas empregando esforços para participar inteligente e receptivamente em tudo o que eles ouçam.
Tradução de Elvio Filho.