Por Turi Collura
Conheça a progressão harmônica utilizada por John Coltrane para a composição, a improvisação e a re-harmonização.
Em poucas décadas, algumas figuras lendárias mudaram a cara do jazz, escrevendo sua história e modelando sua evolução estética. Uma delas foi o saxofonista John Coltrane, que em 1960 lançou um álbum intitulado Giant Steps (em português “Passos de gigante”).
Giant Steps é o quinto álbum de estúdio de Coltrane como líder, gravado em 1959 e lançado em 1960 pela Atlantic Records (catálogo SD 1311). Seu primeiro álbum com a gravadora Atlantic é o primeiro de sucesso para o saxofonista como líder. Muitas de suas faixas tornaram-se modelos de práticas para os músicos de jazz.
Surge uma pergunta: ao que se referia Coltrane ao chamar sua música de “passos de gigante”? Estaria ele se referindo a uma grande inovação na música contemporânea, e, no específico, do jazz? Eu acredito que ele estivesse aludindo aos movimentos harmônicos propostos, que quebram a praxe, consolidada no sistema tonal, de progressões por quintas descendentes. A música Giant Steps incorpora três centros tonais equidistantes. Vejamos a partitura, assim como apresentada no consagrado livro Real Book, para analisarmos sua harmonia.
Na partitura podemos observar três centros tonais: B, G, Eb, que indiquei, respectivamente, em vermelho, verde e azul. As setas arredondadas indicam o movimento dominante-tônica, enquanto os colchetes indicam o movimento cadencial II-V. A proposta estética (e harmônica) de Coltrane foi a de fugir da centralidade de uma tônica, para criar um “efeito prisma”: não mais um centro tonal, mas, sim, três centros equidistantes entre si.
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A próxima figura nos ajuda a entender: o intervalo de oitava, representado pelas doze notas que o compõem, pode ser dividido em 3 partes iguais (Dó-Mi = dois tons; Mi-Lab = dois tons; Láb-Dó= dois tons).
Da mesma forma, observamos a equidistância entre as tonalidade de Si, Sol e Mib, utilizadas na música Giant Steps.
Cada centro tonal é precedido pela própria dominante ou pelo próprio II-V-I.
Está na hora de assistir a um vídeo onde podemos ouvir tudo isso.
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Os Coltrane Changes
O procedimento harmônico proposto em Giant Steps foi o ponto de chegada de algo que Coltrane vinha experimentando há algum tempo. Ele vinha trabalhando sobre uma progressão harmônica, conhecida como “Coltrane changes” ou “Coltrane matrix” – em português mais conhecida como Ciclo de Coltrane – capaz de substituir-se a sequências de acordes mais simples do sistema tonal. Em particular, a nova sequência harmônica substitui a cadência II-V-I, vejamos:
No exemplo acima, a interpolação dos acordes da sequência de Coltrane passa pelas três tonalidades equidistantes: Ab, E, C. Além de Giant Steps, sua música mais conhecida é Countdown, uma composição que tem, como modelo inicial, a música Tune-up de Miles Davis. O próximo exemplo mostra a re-harmonização dos primeiros oito compassos da música original:
Mas não foi somente em Tune-up/Countdown que o saxofonista utilizou-se desse tipo de recurso para criar/re-criar sobre músicas pré-existentes. Sua composição Satellite, por exemplo, tem como base a música How high the moon (Morgan Lewis); a composição Fifth house tem grande relação com a harmonia da música What is this thing called love (Cole Porter); Exotica está baseada na estrutura de I can’t get started (Vernon Duke); ainda, a composição 26-2 é uma releitura da música Confirmation (Charlie Parker) através da aplicação dos Coltrane changes.
Esses exemplos falam da capacidade de Coltrane conseguir utilizar-se dos standards clássicos de jazz para, a partir de suas harmonias, criar novas composições. Outras vezes, Coltrane imprimiu sua forte marca pessoal re-harmonizando músicas como Body and soul ou The night has a Thousand eyes.
COLTRANE: BODY AND SOUL
COLTRANE: COUNTDOWN
Uma curiosidade: o contexto do Ciclo de Coltrane
Coltrane estudou harmonia na Escola de Granoff School of Music em Filadélfia, explorando técnicas e teorias contemporâneas. Ele também teve acesso ao livro Thesaurus of Scales and Melodic Patterns de Nicolas Slonimsky (1947), tido como material de prática instrumental e de inspirações teóricas por muitos músicos de jazz. Nesse livro é possível encontrar um exercício harmônico que levaria ao desenvolvimento do “ciclo de Coltrane”. Outra antecipação dessa progressão harmônica se encontra na parte B da música Have you met miss Jones (Richard Rodgers).
Depois da morte de Coltrane, foi proposta, pelos teóricos e pesquisadores, a ideia que seu interesse pelas relações de terça foi inspirado na religião ou na espiritualidade, com as três áreas tonais equidistantes representando um ‘triângulo mágico’, ou, Trindade. No entanto, David Demsey, saxofonista e Coordenador de Estudos de Jazz na William Paterson University, mostra que, embora o aspecto religioso fosse de alguma importância, os apontamentos para a criação do ciclo eram muito mais “terrenos”, isto é, fundamentados e contextualizados nos estudos harmônicos e musicais por si só. É importante, nesse sentido, mencionar o interesse de Coltrane para sistemas musicais não-tonais. Nesse sentido, seus interesses em ragas indianas durante o início da década de 1960, o Trimurti de Vishnu, Brahma e Shiva podem muito bem ter sido uma referência importante em sua busca para as relações cromáticas e de terças e para as simetrias e geometrias musicais.
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