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O “caso Wave”: a Bossa Nova e a influência do Blues

Wave - Tom Jobim

O “caso Wave”: a Bossa Nova e a influência do Blues

Por Turi Collura

“Vou te contar”: como o Blues influenciou uma das composições mais famosas de Tom Jobim e da Bossa Nova.

 

Surgido no Sul dos EUA por volta da metade do século XIX, o Blues passou a influenciar a música ocidental logo a partir do início do século XX. As suas blue notes, por exemplo, são um elemento bastante presente em gêneros musicais como, por exemplo, o Jazz, o Rock, o Pop. Mas muito pouco se fala da influência do Blues na Bossa Nova. No entanto, alguns estudos recentes apontam, de forma definitiva, a presença de elementos blues no mais sofisticado dos gêneros musicais “populares” que o Brasil produziu.

 

Blue notes e escalas blues

É fácil enxergar uma primeira influência do Blues na afinação de certas melodias da Bossa Nova. Sabe aquela indefinição na afinação do terceiro grau das melodias, ou aquela “blue note” aqui e ali? Na música Wave, objeto de nossa análise, observamos, por exemplo, a melodia carregada de Blues da frase “é impossível ser feliz sozinho”:

Essa frase se baseia na escala de D menor blues (a qual ganha facilmente um 6º grau, a nota si dentre parênteses na imagem a seguir):

Mas, além da “intenção blues” – que, na verdade, vai além do uso de escalas blues e “blue notes” – na música Wave houve, também, um processo de releitura da harmonia blues na sua estrutura típica de 12 compassos. Para uma boa compreensão do que irei apresentar, é útil que você tenha lido a minha publicação anterior chamada “A evolução da estrutura do Blues”.

 

 

O “caso Wave” e a re-leitura criativa do Blues

Tom Jobim utiliza-se da estrutura do Blues de 12 compassos para compor a estrofe (parte A) da música Wave (no exemplo a seguir na tonalidade de D maior):

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Algumas considerações sobre Wave

Em sua produção musical, Tom Jobim explorou todos os recursos disponíveis da tonalidade estendida, criando composições harmonicamente muito ricas. A música que estamos analisando é um caso em que temos uma alternância maior/menor.

 

Antes da primeira estrofe, a música começa com um Vamp em ré menor, composto pelos acordes Dm7-G7, que correspondem aos graus Im7-IV7. Trata-se de um clichê que pertence à área da tônica menor (para quem quiser aprofundar aconselho o maravilhoso Curso Online de Harmonia Aplicada à Música Popular).

 

O termo Vamp que usei acima indica um padrão rítmico, geralmente composto por um ou dois acordes que são repetidos com a finalidade de estabelecer um groove, de “entrar no ritmo”.

 

– A melodia inicial (“Vou te contar”) abre a estrofe que estamos analisando. Aqui o tom passa a ser Ré maior.

– Observamos a estrutura de 12 compassos dessa estrofe, característica do Blues.

– No segundo compasso, o acorde Bbº (bVIº) é uma releitura do acorde Bb7 (SubV7/V).

– Segue um segundo cadencial: Am7 – D7 que leva para o tradicional IV grau que se encontra no quinto compasso da estrutura blues típica.

– O acorde Gm7 é um AEM (acorde de empréstimo modal da tonalidade homônima relativa).

– Já observamos a melodia que acompanha o texto “É impossível ser feliz sozinho”, que cai nos acordes Bb7 – A7, tipicamente uma frase com intenção blues.

– Após isso, a composição volta para a área tonal de ré menor, apresentando novamente o Vamp composto pelos acordes Dm7 – G7.

– A forma da música Wave é AABA, portanto Jobim usa a estrutura harmônica que estamos analisando em 75% da composição.

 

É claro que se trata de uma releitura subjetiva da harmonia do Blues, por parte de Jobim. Fica a dúvida, se a dele foi uma escolha consciente ou não. Mas é assim que funciona a mente de um artista-gênio: pega e elabora, de forma pessoal, os elementos que, de alguma maneira, chamam a sua atenção.

 

Na edição da revista Jazz Times de março de 2007, Toots Thielemans lembra que Lee Konitz parece ter afirmado, uma vez: “Toots, nós já tocamos Wave há quarenta anos. São dois refrões de Blues soltando um bebop”. O “bebop” ao qual se refere Konitz consistiria na parte B da música, caracterizada por duas cadências II-V-I. Quem sabe, por isso os norteamericanos acolheram de braços abertos as obras do compositor carioca – o qual, diga-se de passagem, transcorreu os anos mais produtivos de sua carreira musical nos EUA.

 

Coda

Ronaldo Bôscoli cantava sobre “A influência do Jazz” no Samba, preocupado com o fato que o Samba estivesse perdendo a sua autenticidade por sofrer miscigenações com aquele “outro” gênero. Mas a música nunca pôde ser “engarrafada”, presa a limites geográficos. A música se mistura, se renova a toda hora, isso está na sua natureza.

 

Como escreve Pollyana Niehues em seu artigo Indeterminável Tom Jobim: “Tom é jazz, é samba, é música clássica francesa, é valsa, é choro, é bolero, é samba-canção, é bossa nova, mas nem sempre”.

 

Viva Tom Jobim, carioca, do mundo, brasileiro!

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Turi Collura

Turi Collura é pianista, compositor, músico profissional. Atua como professor em Cursos de Pós-Graduação, em Conservatórios e Festivais de música pelo Brasil e no exterior. Formado na Itália em Disciplinas da Música (Bolonha) e na Escola de Jazz (Milão), é Mestre pela UFES, e Pós-graduado pela mesma Instituição. Turi é Coordenador Pedagógico do Terra da Música e Professor de alguns cursos online. É autor de métodos em livros e DVD (Improvisação, Piano Bossa Nova, Rítmica e Levadas Brasileiras para Piano), alguns dos quais publicados pela Editora Irmãos Vitale e com tradução em inglês. Ativo na cena musical como solista, músico de estúdio e arranjador, tem participado da gravação/produção de diversos discos. Em 2012, seu CD autoral “Interferências” ganhou uma versão japonesa. Seu segundo CD faz uma releitura moderna de algumas composições do sambista Noel Rosa.

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