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De Bach a Djavan: quase quatro séculos de sistema tonal – Parte 2

Sistema tonal

De Bach a Djavan: quase quatro séculos de sistema tonal – Parte 2

Por Turi Collura

Hoje vamos prosseguir com algumas reflexões sobre as mudanças estéticas e compositivas que se desenvolveram, ao longo dos últimos séculos, na música ocidental e no sistema tonal.

 

Na primeira parte desse post, nos perguntamos: O que ficou igual? O que mudou?

 

Após algumas considerações ali concluímos que, desde a época Barroca, a cultura ocidental fundamenta a música tonal nas mesmas “regras”, brevemente resumidas em alguns pontos chave:

– A centralidade de uma tônica;

 

– A existência de três funções tonais (tônica, dominante e subdominante) que se sucedem criando uma alternância entre movimento e equilíbrio, entre  tensão e resolução;

 

– Clichês harmônicos por quintas descendentes relacionados à sequência IV-VII-III-VI-II-V-I ou partes dela.

 

– O trítono surge como “o dono do pedaço”;

 

Na publicação de hoje nos colocamos a pergunta: no que diz respeito à harmonia e à melodia, o que mudou, de Bach para cá? Observamos aqui duas mudanças:

 

– A densidade harmônica;

 

– A que gosto de chamar de “emancipação das dissonâncias”.

 

Vamos começar aqui pelo primeiro desses pontos.

Densidade harmônica

Característica da harmonia da música ocidental é o uso de intervalos de terças para a formação de acordes. Isto é, os acordes são compostos pela sobreposição de notas que se distanciam por intervalos de terças.

 

Todos os intervalos são calculados a partir da fundamental do acorde, vejamos o exemplo seguinte:

Observe: as notas utilizadas para a construção do acorde até a 13ª são as da escala (o que nos faz logo suspeitar que o acorde e a escala têm uma relação indissolúvel).

Desde épocas remotas, a humanidade se coloca perguntas existenciais muito sérias, como no caso da antiga questão:

Já na música, a pergunta pode ser outra:

No caso do ovo e da galinha, os estudos nunca consideraram o papel que o galo teve na questão. Já na música, podemos afirmar que a escala nasceu antes do acorde.

 

A partir das notas disponíveis nas escalas, os músicos começaram a criar os acordes. No sistema tonal, acorde e escala são inseparáveis. Donde provém que melodia e harmonia andam estritamente juntas, podendo nós imaginá-los como os dois lados de uma mesma moeda.

Feitas essas considerações, o que é “densidade harmônica”?

Com esse termo, nos referimos à quantidade de sons que utilizamos para a formação dos acordes. Por exemplo, a densidade harmônica de uma música baseada apenas em acordes por tríades é diferente de outra que utiliza acordes que incluam intervalos de sétima, nona, décima primeira e décima terceira.

 

A densidade harmônica mudou, ao longo dos séculos.

A figura seguinte nos fornece uma ideia muito interessante a respeito disso:

A ideia dessa figura é emprestada do livro do compositor francês Jaques Siron intitulado “La partition intérieure” e adaptada por mim no que diz respeito a alguns gêneros da música popular.

Ao ler as informações da figura anterior, aprendemos então que, na época de Bach, havia formações de acordes com densidade 4, isto é, de acordes com a sétima. Isso se dava, especialmente, em acordes de dominante (1-3-5-b7) e diminutos (1-b3-b5-bb7).

O acorde Xm7 era admitido, sobretudo com função de IIm7, pois era considerado uma inversão do IV6:

É importante observar que, naquela época, a sétima maior era considerada uma dissonância, e que, portanto, o acorde X7M (1-3-5-7M) não era utilizado como tal. Essa consideração é válida até dias recentes: no jazz dos primórdios (até a assim chamada “era do swing”) esse tipo de acorde era raro,“exótico”. No livro “Swing to bop” de Ira Gitler encontramos o depoimento de um guitarrista relatando o quanto era estranho tocar o primeiro acorde da música Solitude (Gershwin) com a sétima maior na nota mais aguda. Trata-se da mesma situação de Eu sei que vou te amar, de Tom Jobim: a música começa com o acorde de C7M, e a melodia fica, ao longo do primeiro compasso, na nota si, reforçando a formação do acorde.

Uma consideração sobre a presença da 7ª maior nos acordes

Precisamos levantar, aqui, uma reflexão, pois hoje em dia a “teoria” e a “prática” divergem em alguns pontos. De fato, o ouvido de nós, seres do século XXI, pode admitir como acorde “consonante” – ou “não dissonante” – fenômenos sonoros como, por exemplo, um acorde X7M( 9, #11, 13). Ao ouvirmos isso como último acorde de uma música, por exemplo, “estamos de boa”, admitindo-o como acorde resolutivo, como “descanso”.

 

Por outro lado, segundo uma visão mais “conservadora”, poderíamos  considerar uma simples 7ª maior como intervalo dissonante e pronto. Quem tem razão? Os manuais de harmonia ou a praxe? E se for a praxe, de que praxe estamos falando? De quem? Será que é o contexto musical a definir isso? Será que é o ouvinte? Fica aqui uma questão aberta para o debate, que acaba puxando para o lado dos estudos de estética musical.

 

Essas últimas considerações nos levam ao segundo ponto que mencionamos acima, o da “emancipação das dissonâncias”.

Turi Collura

Turi Collura é pianista, compositor, músico profissional. Atua como professor em Cursos de Pós-Graduação, em Conservatórios e Festivais de música pelo Brasil e no exterior. Formado na Itália em Disciplinas da Música (Bolonha) e na Escola de Jazz (Milão), é Mestre pela UFES, e Pós-graduado pela mesma Instituição. Turi é Coordenador Pedagógico do Terra da Música e Professor de alguns cursos online. É autor de métodos em livros e DVD (Improvisação, Piano Bossa Nova, Rítmica e Levadas Brasileiras para Piano), alguns dos quais publicados pela Editora Irmãos Vitale e com tradução em inglês. Ativo na cena musical como solista, músico de estúdio e arranjador, tem participado da gravação/produção de diversos discos. Em 2012, seu CD autoral “Interferências” ganhou uma versão japonesa. Seu segundo CD faz uma releitura moderna de algumas composições do sambista Noel Rosa.

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